Eles&ELAS 305- CLARA PINTO CORREIA

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Parece mentira, mas a Clara nunca se deu ao trabalho de finjir que estava tudo bem num país que insiste em comportar-se como se ela já tivesse morrido: muito pelo contrário, riu-se, riu-se, riu-se. E explicou-nos, sem qualquer espécie de embaraço, que precisava mesmo de rir para não enlouquecer de dor numa Pátria tão madrasta como esta. Depois foi-se embora porque ou estava a horas não sei onde ou acontecia não sei quê, e nós nem queríamos acreditar: deixou um sapatinho de cristal atrás de si.

Sempre adorei aquele sorriso dela. O sorriso do gato que acabou de engolir o canário, ali mesmo, frente à câmara ou frente às outras pessoas. Agora fiquei a saber que ela de vez em quando também se ri às gargalhadas de uma forma absolutamente contagiante. E que se recusa a falar de todos os males que os Portugueses lhe fizeram porque “não temos propriamente a imortalidade à nossa frente e a construção de um futuro feliz não pode fundamentar-se em coisas dessas.” Outra coisa que se percebe depressa é que ela não fala como o comum dos mortais, e que todas as analogias que vai buscar para se explicar melhor, por inexplicavelmente cultas que sejam, são também divertidíssimas. Aos sessenta anos, avó orgulhosa de quatro netos, sempre com aquele estilo feliz que lhe assenta como uma luva e que também mais ninguém tem mas ilumina a alma a qualquer um, Clara Pinto Correia publicou internacionalmente FEAR, WONDER, AND SCIENCE, um livro importantíssimo sobe a Reprodução Medicamente Assistida em colaboração com o grande mestre Scott Gilbert, e já lançou em Lisboa o primeiro dos três romances que em conjunto formam a trilogia A TIRANIA DA DISTÂNCIA, intitulado TODOS OS CAMINHOS. Este romance recebeu em Março deste ano, no Porto, o Prémio Mulher Empreendedora 2017 para o domínio da literatura.

SE O LEITOR NÃO SABIA DE NADA DISTO E ATÉ JÁ TINHA DADO ESTA PESSOA POR MORTA, SOSSEGUE QUE NÃO ESTÁ SOZINHO.

Pouco tempo depois, e na sequência da visita dos dois autores àquele país a pedido de várias Universidades, o Japão anunciou a compra do FEAR AND WONDER para tradução e publicação em 2020, quando estiver toda a gente nos Jogos Olímpicos de Tóquio. O próximo volume de A TIRANIA DA DISTÂNCIA sai no início da próxima Primavera, chama-se MENINAS MORENAS, e Clara não esconde que lhe tem um especial carinho. Se o leitor não sabia de nada disto e até já tinha dado esta pessoa por morta, sossegue que não está sozinho. Na realidade, como diz a própria Clara com o sorriso malicioso que nem os anos nem os desgostos conseguiram tirar-lhe, “isto é de facto muito estranho, mas a verdade é que eu ando para aqui a viver como se já estivesse morta.” De jeans e top justinhos a escritora parece tudo menos morta, embora nos fale com a alegria de quem nunca passou na vida por qualquer espécie de mágoa ou de aflição. Mas afinal, pensando bem, nada é novo neste desenlace: Clara Pinto Correia sempre foi um mistério. Eu sou daqueles Portugueses que sempre consideraram a Clara um mistério muito bom, e portanto até poderia, aqui ou ali, perder a neutralidade que procuro sempre manter nestas conversas. Mas ela não me deixa. Está o tempo todo a brincar com as ideias-feitas sobre a sua própria imagem, e fala dos tempos duros que se abateram sobre si a partir de 2004, e pior ainda depois de 2010, com a alegria diabólica que repete
várias vezes ser a sua melhor arma de defesa. “Se eu não fosse capaz de rir na face das minhas desgraças, já tinha enloquecido há muito tempo”, afirma. Mordisca a unha do polegar, e acrescenta, pensativa: “E, nesse caso, é evidente que já estava mesmo, literalmente, completamente morta”. Ainda bem que está bem viva, e que reaparece cheia de energia e de ideias, e com uma grande trilogia sobre a resiliência do amor e a tirania da
distância, ao fim de sete anos de silêncio. Estive a trabalhar nos Estados Unidos e fartei-me de escrever em inglês. É só mesmo escrever no Google FEAR, WONDER, and SCIENCE, aceder ao livro, e ler o meu trabalho para se perceber que não estive parada de todo. Além disso também estive a dar aulas, a alunos porreiríssimos que puxavam tanto por mim como eu por eles. Foi bom, muito bom.

VIVO DE CERRAR OS DENTES ETRABALHAR IMENSO, E DE INVESTIRO MEU MELHOR EM TUDO O QUE FAÇO.

Portanto, posso escrever com toda a certeza que não pensou nunca no suicídio?
Ó Srª Drª Maria da Luz de Bragança, muito bem, leve lá a taça – a isto é que se chama entrar a matar! (gargalhada). Sei lá, claro que pensei, mas era
uma coisa difusa, mais em benefício dos miúdos, que ainda por cima na altura estavam em plena adolescência e andavam, mesmo, extremamente
confusos.
Agora está a dizer-me que a sua morte ia ser um factor positivo para dois rapazes adolescentes?
Não, Maria, agora estou a falar a sério. Detesto teatrinhos. De repente fiquei sem qualquer espécie de trabalho e tive que pedir ajuda a toda a gente
em que ainda confiava. E vivia numa aldeiazinha muito isolada. E, à noite, às vezes pensava o óbvio. Claro que, se eu morresse, a esta hora já andava toda a gente a dizer que eu sou uma figura incontornável da segunda metade do século XX. Veja bem isto, é espantoso o que um autor tem que fazer para vender, né? (risos) E olhe que os meus putos, quando eram pequeninos, às vezes me perguntavam se era mesmo verdade que iam ficar muito ricos quando eu morresse. Foi alguém que lhes disse isso na escola. Bom, ó amiga, estas mitologias dos autores que morrem na mais completa das misérias e são descobertos cem anos depois, estas tristezas trágicas, estes fados sem regresso, não me diga que não sabe que calam sempre muito fundo no espírito portugês. As pessoas gostam. O Camões morreu na miséria, o Camilo morreu na miséria, o Pessanha morreu na miséria, o Pessoa, o Luís Pacheco… Epá, afastem de mim esse cálice. Ainda quero fazer muitas coisas, e ser muito feliz, durante imensos anos.

Mas vive do ar?
Vivo de cerrar os dentes e trabalhar imenso, e de investir o meu melhor em tudo o que faço. Além disso, tenho uma família maravilhosa, que me tem
ajudado o tempo todo desde que voltei da América e descobri em dois ou três meses que ninguém queria, mesmo, dar-me trabalho. E sabe quem
mais é que me ajuda? Pequenas mercearias, lojas de conveniência, sítios pequeninos com coisas para a casa, o café da esquina, o meu senhorio
que tem uma paciência de santo… essas pessoas, que também não têm, elas próprias, muito dinheiro. E disto eu gosto, também. Sinto-me imensamente protegida no meu bairro.

E onde fica exactamente o seu bairro?
Num sítio que ainda é bairro, e que ainda não foi tomado de assalto pelos estrangeiros. Isto dos estrangeiros até me arrepia.

Agora não podemos falar disso. Temos mesmo que passar à entrevista formal.                                                                                                              Vamos a isso. Ó jeitoso, trazes-me outra Água das Pedras com muito gelo e um bocadinho de limão?
E é nesta altura que suspende a sua atitude de brincadeira na face da desgraça, acende um cigarro, e me olha nos olhos com toda a intensidade. Não sou homem. Mas percebi, numa fracção de segundo, por que é que tantos homens se apaixonaram tão perdidamente por estes olhos.

SE EU NÃO FOSSE CAPAZ DE RIR NA FACE DAS MINHAS DESGRAÇAS, JÁ TINHA ENLOQUECIDO HÁ MUITO TEMPO.

Vamos lá ver. Eu defendo que todos estes mal entendidos que a rodearam nos últimos dez anos têm uma raiz comum. Já ouvi dizer tudo e mais
alguma coisa a seu respeito. Gosto da sua escrita. Já ouvi pessoas que juram que é um génio. Também ouvi dizer que uma pessoa que se divide
tanto em tantas actividades não pode ser boa em nada. Há quem a felicite por ter partido completamente sozinha para a América, para ir estudar, trabalhar, publicar, e até casar em Las Vegas. Há quem diga que tudo isso foi um oportunismo descarado. Ou seja, nunca se percebe com clareza
quem é, realmente, a Clara Pinto Correia. E a Clara, sabe quem é?                                                                                                                                    Oh, Maria, em pouquíssimas palavras claro que sei. É que essa é muito fácil. Ao fim de sessenta anos de grande esforço de estudo e formação, outros tantos de criatividade, e mais outros tantos de serviço ao país, a Clara Pinto Correia… (começa sorrir)… então, a Clara Pinto Correia é uma gaja que fez um plágio e teve um orgasmo! (solta mais uma gargalhada) E isto só funciona em toda a sua dimensão trágica se for dito assim mesmo, “é uma gaja”. É ou não é? Dá para medir muito bem, com todo o poder que isto comporta, o quanto as pessoas são mesmo tinhosas. Ti-nho-sas. Adoro esta palavra. E é maravilhosamente adequada.

Mas essa caracterização não a magoa?
Mas a Maria julga que eu sou Jesus? Oiça, claro que magoa! Sobretudo porque tem desencadeado uma luta sem quartel para me impedir de existir, o
que quer dizer que, por muito que eu saiba todas as coisas que sei, e tenha todos os talentos que tenho, quase dois anos depois do meu regresso
sinto-me, ainda, um desperdício com pernas. Mas o que é que eu vou fazer, ficar no meu cantinho esmagada pela minha mágoa? Isso é que era bom. Prefiro levar a minha neta ao Jardim Zoológico e contar-lhe algumas coisas especiais que eu sei sobre o pescoço das girafas. Gosto de andar por aqui. Gosto de ver a forma como o tempo se vai mudando nas coisas quotidianas e acaba por gerar outro tempo. Gosto de pensar que ainda sou do tempo das máquinas de escrever, ou do tempo das aulas de Biologia no Colégio dos Nobres. E os valores que regiam os equilíbrios de forças quando eu comecei a viver por minha conta, aos dezassete anos, são tão radicalmente diferentes de novos valores que se estão a desenhar agora que eu, por mim, estou cheia de curiosidade.

A Clara continua realmente com aquele arzinho de miúda malcriada que sempre a caracterizou, e é mesmo difícil acreditar que já tem mesmo sessenta anos. Mas, de qualquer forma, não tem medo da velhice?                                                                                                                                  Não, de todo. E olhe que as aparências iludem. Eu podia ter um arzinho de miúda, podia parecer uma bomba sexy sempre armada em boa, mas os meus trinta e quarenta anos foram décadas extremamente pesadas para mim, em parte porque nessa idade ainda não gerimos assim muito bem as nossas emoções. Agora é um alívio enorme sentir esse peso a sair-me cada vez mais de cima dos ombros. Com toda a sageza e toda a capacidade
de visão global que vamos desenvolvendo com os anos, sinto-me transportada através de um longo período de aprendizagem que não podia ser mais emocionante. Aliás, foi uma das minhas grandes preocupações quando escrevi estes três livros: os amantes que desempenham o papel central já dobraram há tempos o marco dos cinquenta, e divertem-se perdidamente um com o outro. Um tipo de divertimento simples, leve, descomprometido, e muito generoso, que está fora de causa conseguirmos fruir na nossa juventude. Nesse sentido, esta história de amor e de separação involuntária é também uma promessa. Não tenham medo. Tá-se bem.

Até aquele triângulo amoroso que se renova de seis em seis meses em todos os romances da trilogia, aquele filho adoptivo que está do outro lado
do mundo, tudo isso é tratado com muito carinho pelos três participantes, não é?
Pois, por uma vez na vida que alguém deixe bem claro que as coisas não precisam de ser todas um drama muito feio e terrivelmente mal-sucedido.
E, a propósito, claro que considero que não é todo aquele divertimento do triângulo amoroso que menoriza o meu trabalho, ou lhe rouba a sua seriedade intelectual. Muito pelo contrário. É muito mais fácil fazer chorar do que fazer rir. E, como o homem é alentejano, conta a história à mulher de uma forma tão surreal que toda a gente se parte a rir. E eu fico contente, como é óbvio. Mas nem isso os videirinhos portugueses conseguem admitir. Às vezes as pessoas vêm ter comigo a dizer que gostaram muito do livro, e depois hesitam, coram, baixam a voz – tudo isto para me confidenciarem que se “divertiram imenso” a lê-lo. Como se o riso fosse crime. Coitados de tantos autores geniais. Sei lá, estás a ver o Voltaire? Ah, e o Kiping, estás a ver o Kipling? Bem, ouve, e as aquelas cenas de cama completamente disfuncionais do John Updike na tetralogia do Rabbit? Aquele entusiasmo todo que a arrastou para o tratamento por tu é impossível de ignorar.

POIS, POR UMA VEZ NA VIDA QUE ALGUÉM DEIXE BEM CLARO QUE AS COISAS NÃO PRECISAM DE SER TODAS UM DRAMA MUITO FEIO E TERRIVELMENTE MAL-SUCEDIDO.

Os teus leitores têm-te dito mais coisas que tu consideras interessantes?
Curiosamente, quem vem falar comigo são quase sempre as leitoras. E é só quando conseguem ficar sozinhas comigo, nem que seja na casa de banho. Talvez tenha escrito uma saga muito mais feminina, ou até mesmo feminista, do que aquela que tive em mente ao princípio. A escrita empurra-nos frequentamente para os seus próprios domínios pelos seus próprios meios, e se a pessoa gostar do sítio onde foi parar começa instintivamente a alimentá-lo com situações que não estavam no programa original mas são boas de construir como tudo. É o grande mistério da arte, não é? Eu gosto disto. Gosto daquilo que nenhum de nós pode explicar de onde vem, e posso ficar horas e horas seguidas no teclado para deixar fluir sem qualquer espécie de censura todas as situações desconhecidas do meu mundo interior.

Está bem, mas então vocês trancam-se na casa de banho, e nessa altura o que é que te dizem as leitoras?
Ah, essa é a minha melhor recompensa pelo esforço destas setecentas páginas que à primeira volta saíram de rajada. As mulheres perguntam-me, às vezes mesmo com um ar incrédulo, “mas quem é que lhe contou a história da minha vida, para depois conseguir reproduzi-la assim desta maneira?”; ou então “nunca me identifiquei tanto com nenhum outro livro tenha lido na vida.” (bate com o punho no meu punho, de sorriso luminoso) Yes! De cada vez que isto acontece, consegui o que queria: escrever um livro de aventuras que retrata a vida, e sobretudo os pensamentos, das pessoas normais. E a vida pode ser dura, pode ser horrível, pode ser extraordinariamente cruel, mas por favor, a vida é linda. E há sempre circunstâncias que nos recordam isso mesmo. Todos os dias.

No caso destes dois, grande parte da energia parece que lhe vem do amor.
Ai, filha, a vida sem amor não se atura. Não se atura, mesmo. Não achas?

Tu, pessoalmente, aqui e agora aos sessenta nos estás apaixonada?
Por acaso estou. Mas, e se não estivesse? O amor dos filhos, o amor dos netos, em desespero de causa vai-se buscar um cão…

Mas Clara, esta história de amor deve ser muito a tua. É verdade, à medida que lemos o livro vai-nos parecendo cada vez mais um livro de memórias…
Pois é. No seu conjunto, a Trilogia é mesmo um livro de memórias, e cada romance vai contando mais, e mais fundo, e mais complexo. Só que não
são as memórias de ninguém que exista! (risos) Eu inveitei aquela mulher, com aquelas memórias inventadas! Não foi nada fácil de fazer, deu muita
luta, fiz muitas vezes directas só por causa de duas páginas que não estavam a sair no tom certo, mas fez-me muito feliz. E, se as pessoas se reconhecem nele, isso também as faz felizes de certeza. Há poucas coisas tão balsâmicas como descobrirmos que não, de maneira nenhuma, não estamos sozinhos neste mundo.

A TRILOGIA É MESMO UM LIVRO DE MEMÓRIAS, E CADA ROMANCE VAI CONTANDO MAIS, E MAIS FUNDO, E MAIS COMPLEXO.

E, entretanto, também estavas a escrever o FEAR, WONDER, AND SCIENCE?
Ao princípio, sim. Aliás, pior do que isso, o livro estava naquela fase muito difícil em que temos que incorporar no trabalho que já fizemos as exigências dos peritos que o avaliaram. Costumam ser só dois, mas nós tivemos tres! O tema é explosivo, a Columbia tomou imensas precauções, e para fazermos o que queríamos precisámos de imensa criatividade por cima de todo o conhecimento de causa que já tínhamos. Passava horas com o Scott no Skype, e ainda mais horas em total silêncio, de roda dos meus capítulos. Só parava quando ouvia cantar os passarinhos e percebia que o dia estava quase a nascer. Tinha estado a trabalhar a noite inteira sem dar por isso. E isto aconteceu tantas vezes, tantas vezes, tantas vezes, que os meus médicos começaram a ficar preocupados. A sério.

TEMOS QUE ACEITAR QUE NA NOSSA VIDA NUNCA EXISTIRÁ AQUELA EXPERIÊNCIA LINDA DA GRAVIDEZ, E SOBRETUDO NUNCA
EXISTIRÃO OS FILHOS COM QUEM NÓS SONHÁVAMOS DESDE HÁ TANTO TEMPO.

Escreves ciência tão apaixonadamente como escreves ficção, é isso?
Claro que sim! E da maneira como dou aulas, também (sorriso do gato) Imagina que um aluninho veio ao gabinete perguntar-me, “Please, Clara, I really need an A, so please, this means my life, what are you on and where do you get it?” (o sorriso desaparece) É horrível o ensino estar estruturado de tal maneira que, desde o primeiro ano, os alunos estão mais interessados nas notas do que nas matérias. Ao ponto de os alunos virem perguntar-nos o que é que andamos a tomar e onde é que se arranja. Que horror.

E tu andaste a vida inteira a tomar o quê, com toda a franqueza?
Adrenalina. Pura adrenalina, de adorar o que faço. Dar aulas, então, é um banho daquilo. E depois, encharcada de adrenalina que obviamente não tinha ido comprar a lado nenhum, fechava a porta e voltava ao livro. Já escrevi livros académidos internacionais antes. Mas, desta vez, eu estava a falar sobre todo aquele mundo das inseminações artificiais, das mães hospedeiras, das fertilizações in vitro, do turismo reprodutivo… e tudo isto põe tantos pilares da humanidade em causa, e como tal precisa mesmo de ser tão bem explicado às pessoas, que é impossível não escrever num tom “pungente”. Era o que o Scott dizia das minhas partes, e eu subscrevo com muito orgulho. Estou tão cansada de ir falar a tantos encontros sobre a infertilidade no humano, e de a partir de certa altura ver as mulheres a começarem a chorar, a pedirem para falar mais tempo comigo, a abraçarem- se a mim no final e pedirem-me o endereço de email, que sinto esta faceta da minha escrita quase como uma missão.

NÃO ADIANTA PÔR AS PESSOAS A FALAR SE ELAS NÃO TÊM INFORMAÇÃOQUE LHES PERMITACONSEGUIR PENSARDE.

Bem, mas como é que podes ter a certeza de que isso das lágrimas não á apenas uma reacção epidérmica das mulheres portuguesas?                     Oh Maria! (risos) Oude, seriamente, isto acontece onde quer que fale! Por exemplo, há dois meses os japoneses pediram-nos para irmos lá fazer uma sirie de conferências e seminários sobre o nosso livro. Foram quatro dias extraordinariamente intensos e muito profissionais, até que o Scott se foi embora e eu dei por mim numa sala de reuniões pejada de mulheres completamente Classe A, assim tipo directoras de departamentos, ou donas de editoras, que que queriam falar exclusivamente comigo, por-que queriam ouvir-me contar o que é que acontece quando estas técnicas falham todas e acabou-se a brincadeira, temos que aceitar que na nossa vida nunca existirá aquela experiência linda da gravidez, e sobretudo nunca existirão os filhos com quem nós sonhávamos desde há tanto tempo. Só a meio da minha palestra é que percebi por que é que não estava um único homem na sala: elas queriam estar à vontade, e quase não houve uma que não começasse a chorar. Pessoas japonesas a chorar! Que se lixe o perder a face, que se lixe a contenção asiática: aquelas mulheres tinham tanta infelicidade estampada na cara que houve ali um minuto em que temi o pior, porque até eu comecei a ficar com a voz embargada.

Tanto quanto sei, passaste por várias coisas…                                                                                                                                                                 Onde isso já vai. E como tudo isso desapareceu com-pletamente assim que adoptei os meus filhos. Estas técnicas podem ter consequências absolutamente destrutivas na vida das pessoas. E no que resta do equilíbrio do mundo, agora com esta moda do tu-rismo reprodutivo. Daí o que o Scott e eu pensámos que era a urgência deste livro, ou que as asiáticas acharam que era a urgência desse encontro: temos que começar todos a falar disto. Mas não adianta pôr as pessoas a falar se elas não têm informação que lhes permita conseguir pensar. Olha a vergonha da linguagem dos políticos, deputados, jornalistas, sei lá, bloggers e outros opinion makers portugue-ses, só para te dar um exemplo horrível.

O que é que é assim tão horrível?                                                                                                                                                                                    Olha, basta a linguagem. De cada vez que oiço dizer “barriga de aluguer” fico mesmo para morrer de ver-gonha por ser o meu país a fazer isto!

Mas porquê?                                                                                                                                                                                                                      Pelo amor de Deus, mas desde quando é que se pode reduzir uma mulher à sua barriga? Para te dar o pior dos termos de comparação, acaso alguém chama às prostitutas “vaginas de aluguer”? Esse maldito termo apareceu de geração espontânea no final dos anos 70, quando começaram as FIVs e nasceram as primeiras crianças concebidas por mães hospedeiras e a lingugem da área ainda não estava minimamente organizada. Mas ouve, as feministas protestaram, os biólogos protestaram, até houve mães hospedeiras que protestaram, e então os médicos pensaram melhor. Fizeram-se encontros internacionais, publicaram-se artigos em boas revistas, e em 1990 o ter-mo já estava banido da linguagem da especialidade. Que horror, Maria, este disparate dos portugueses a chamar barrigas às mulheres é triste, mesmo triste. Os peritos que nos avaliaram, e que desconhecem esta situação, queriam por força que eu tirasse o parágrafo com o assunto, porque achavam que o problema já não se punha. Não imaginas a batalha que aquilo foi (respira fundo e encolhe os ombros com simplicidade) Enfim, também, conseguir publicar na Columbia não é brincadeira nenhuma para ninguém.

E andaste nessa batalha enquanto escrevias o romance?                                                                                                                                                        Ah, não. Isso não. Naquele momentos, com o total rigor científico que nos é exigido, A TIRANIA DA DISTÂNCIA tinha que ficar parada. Depois, lá voltava eu para o meu fantástico mundo interior. Agarrava-me de tal maneira ao teclado que os meus amigos diziam que eu estava endemoninhada.                                                                                                                                                                                                                                                Se calhar estás. Só a tua vida bem podia ser a de um personagem de ficção científica. A Clara é bióloga, historiadora da ciência, Professora universitária, actriz, jornalista, e escritora consagrada, ainda por cima bilingue…                                                                                                                  Também dou Mãe, e Avó. E tenho imenso orgulho nisso.

PENSARDE CADA VEZ QUE OIÇO DIZER“BARRIGA DE ALUGUER” FICO MESMOPARA MORRER DE VERGONHA POR SERO MEU PAÍS A FAZER ISTO!

E tens algum lema que te oriente em tantos caminhos?                                                                                                                                             Tumidis non mergimur undi. Foi o lema atribuído pelo Plínio aos ouriços do mar, que pareciam tão colados às rochas que nenhuma tempestade poderia arran-cá-los dali e destruí-los: não nos deixamos submer-gir pelas ondas. Eu sempre fui assim, consegui ser assim em momentos que fizeram tudo parecer im-possível, e é por isso que tenho tanta curiosidade e optimismo em relação ao futuro.

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